25 de março de 2012

amizade incomum




“Fazia tempo que o pato sentia que algo não ia bem”, diz o narrador. Nesse momento conhecemos a morte, no mesmo instante em que o pato repara que ela está acompanhando-o. A morte com seu camisolão quadriculado e sapatilhas pretas. Ela é miúda, quase delicada, a despeito da cabeça de caveira. Tem a medida do pato, como se fosse seu duplo ou sombra, e carrega uma tulipa roxa – algo que nunca é mencionado no texto e que o pato nem sequer percebe ou problematiza. Erlbruch faz o pato reagir à presença da morte com uma sutileza marcante. Ele arregala os olhos, o corpo ereto, e pergunta: “você vai me levar agora?”. A morte diz que está sempre por perto por via das dúvidas.

O pato, por sua vez, demonstra uma gentileza ingênua: “Vamos até o lago?”, pergunta. “Esse era o medo que a morte tinha”, mas o pato a convence. Depois do mergulho, ele se oferece para aquecê-la: “Ninguém jamais havia feito a ela uma proposta parecida”. Na página inteiramente branca, Erlbruch desenha um pedaço de arbusto e o pato, cobrindo o corpo frio da morte com suas asas e pescoço lânguidos. Assim, os dois iniciam um convívio imprevisto, improvável.

Se a morte num primeiro momento assusta o pato, em outro, ela se mostra paciente. Mais do que isso, ela é (quase) seduzida pela vida. A maneira como Erlbruch põe os dois para conversarem, e a animação contida demonstrada pela morte quando ainda existe a possibilidade dela passear um pouco mais, revelam uma relação de estranha familiaridade, um encontro tão inevitável como natural. Quando o pato começa a sucumbir, aparece um corvo solitário no centro da página. O pássaro voa sem a companhia das palavras na página. Grita de bico aberto, em silêncio estridente. O pato começa a fraquejar. Aos poucos, a relação entre ele e a morte se torna contemplativa. “Nas semanas seguintes, eles foram cada vez menos ao lago. Ficavam a maior parte do tempo sentados na grama, e falavam pouco”.

“Estou com frio – disse o pato uma noite – Você não quer me esquentar um pouco?” A imagem que acompanha essa pergunta é a do pato segurando as duas mãos da morte. Estão cara a cara, próximos como em nenhuma outra página do livro. Sentimos uma pontada. Sabemos o que vai acontecer. Mesmo assim viramos a página, pois temos confiança nessa morte, nem invasiva, nem truculenta, essa morte sub-reptícia, que é afinal um fato da vida, nos transmite uma estranha coragem. E assim, na próxima página, em que pela primeira vez aparece a cor azul, vemos a morte sentada ao lado do pato, observando sua figura quieta e serena com uma expressão de (quase) tristeza. “Alguma coisa tinha acontecido”, escreve o narrador.

Uma neve fina e delicada – pontos minúsculos na página azul – cai sobre os dois. É chegado o inverno, o luto, o recolhimento. A morte então alisa as penas no corpo do pato. Não vemos o seu gesto porque Erlbruch prefere apenas dizê-lo: “A morte alisou algumas penas que tinham se arrepiado um pouquinho”. Imaginamos a morte deixando seu rastro no corpo do pato, feito uma marca invisível. E então, como se fizesse parte de uma solenidade, a morte caminha com o pato nos braços até o rio, o pato cujo pescoço outrora quente e aconchegante, pende, sem vida. A morte molha os pés, embora não goste de se molhar (como Erlbruch nos mostrou em uma das primeiras páginas do livro), põe o pato na água, e a tulipa em cima do corpo, dando-lhe um “leve empurrãozinho”. À beira do rio imenso, ela observa o pato aos poucos desaparecer. “Por pouco a morte não ficou triste. Mas assim era a vida”. 

Clique aqui para ler uma entrevista com Wolf Erlbruch.